Na
madrugada do dia 22 de janeiro de 1988, deixou este mundo o Prof. Dr. Salvador
de Toledo Piza Júnior um respeitável velhinho de 89 anos que todas as manhãs era
visto saindo de sua casa, e, levado por um motorista, dirigia-se para a sua
outra casa a Escola Superior de Agricultura "Luiz de Queiroz". Após o almoço
cena se repetia e por vezes o venerado cientista era encontrado na cidade,
freqüentemente em dreção à redação do Jornal de Piracicaba, a fim de entregar
mais um artigo destinado à imprensa leiga. A cidade se cobriu de luto e, à
tardinha do mesmo dia o seu corpo foi entregue à Necrópole da Saudade, onde já
repousavam os restos de sua querida filha, falecida há muitos anos. Assim, a
morte pôs um ponto final a uma vida de estudos, pesquisas, e sobretudo de amor
imenso à Ciência, ao Ensino, à Pátria. Salvador de Toledo Piza Jr., é hoje
apenas uma grande saudade.
Tendo convivido com ele, sob o mesmo teto, na nossa mui amada Escola
Superior de Agricultura "Luiz de Queiroz", por mais de 40 anos, primeiramente
como seu Assistente e depois como colega, eis que tive a grande honra de
sucedê-lo no Departamento de Zoologia, estive presente a todas as suas
principais atividades. Presenciei os seus longos períodos ao microscópio,
desvendando modalidades desconhecidas de determinação do sexo em insetos através
de cromossomos; ou acumulando provas da inexistência de quiasmas e da
dicentricidade em cromossomos de escorpiões; ou outros aspectos ainda não
estudados da citologia de invertebrados. Os trabalhos resultantes tiveram
repercussão internacional, tendo sido considerados pelos maiores especialistas,
como M.J.D. White, H.A. Guérin etc.
O Prof. Dr. Antonio B. de Uchôa Cintra, então Reitor da USP, afirmou
certa ocasião em Piracicaba, em visita à ESALQ, que existem cientistas de três
altitudes. O melhor deles não é o que acumula o maior número de dados ou que
registra quantidade muito grande de fatos novos. E não é o que conduz maior
número de experimentos. O melhor cientista, disse o Magnífico Reitor, é aquele
que, jogando com os dados obtidos por todos os demais, elabora as
generalizações, as teorias, os sistemas, construindo a essência, a filosofia da
Ciência. Estes realmente estão no mais alto nível e aqui se colocou o Prof. Piza
durante a sua longa vida científica, como o demonstram inúmeros de seus
trabalhos, principalmente as várias campanhas que houve por bem desenvolver.
A mais significativa destas campanhas referiu-se à inexistência nos
cromossomos das células sexuais de partículas responsáveis pela transmissão dos
caracteres hereditários, isto é, de genes corpusculares. A empolgante campanha
iniciou-se em 1931, perdurou por mais de 30 anos e constou de diversas
contribuições, das quais talvez a mais expressiva apareceu em 1951 e se
intitulou "A agonia do gen".
Na década de 60, Piza rebelou-se contra o conceito da vivência do
vírus. Realmente, partículas destituídas de água, que não se nutrem, não
respiram e não se multiplicam, não podem ser dotadas de atributos vitais. Mais
uma jornada vitoriosa, que se desenrolou por cerca de 10 anos. "Quem sustentar
que o vírus vive, venha de lá com as provas... mas deixe em paz o conceito de
vida, que esse não podemos mudar", escreveu ele em um de seus inúmeros trabalhos
sobre o assunto.
Bem cedo o Prof. Piza ingressou no mundo dos artrópodos, tendo
trabalhado com insetos, aranhas, opiliões, escorpiões, etc. Nos últimos anos,
vinha trabalhando com insetos ortopteróides, incluindo ortópteros, fásmidas,
mântidas e baratas, especialmente os dois primeiros grupos. Descreveu mais de
300 espécies, muitas representando gêneros novos e, neste setor, seguia as
pegadas dos antigos autores, descrevendo-as em latim. Aliás, Piza gostava muito
da língua latina. A ESALQ guarda talvez a maior coleção de ortopteróides
brasileiros, organizada por ele ao longo de muitos anos.
Piza deve ser considerado um pioneiro no estudo e divulgação de todos
os tópicos pertinentes à evolução dos animais, com início em uma época em que
isso se constituía em verdadeiro sacrilégio. Deixou-se influenciar por vários
vultos evolucionistas da Europa, especialmente Ernest Haeckel e, no Brasil, pelo
Prof. Dr Carlos Teixeira Mendes que, como ele, alistou-se entre as figuras
exponenciais da Escola Superior de Agricultura "Luiz de Queiroz".
Toda a atividade científica do Prof. Piza se desenvolveu sob as luzes
evolucionistas. Ao analisar certos fatos, obtinha dados referentes à evolução,
dados estes que por vezes passavam despercebidos por outros autores. Escreveu
certa vez, por exemplo, que "dois cientistas de grande renome surpreenderam no
Jardim das Plantas, de Paris, um jovem chimpanzé sentado ao lado do cadáver de
sua mãe e que se apresentava tomado de grande tristeza. De permeio a convulsivos
soluços, procurava reanimar com as mãos o corpo frio de sua mãe. E chorava, mas
não derramava lágrimas. Chorava em seco como se costuma dizer. Como se vê,
macaco também chora. Sabe-se que há pessoas que por mais que se emocionem são
incapazes de chorar. Podem comover-se até aos limites do desespero, mas não
conseguem verter uma só lágrima. Tal como os chimpanzés, igualmente choram em
seco. Homem e macaco, sendo parentes, não é para estranhar que o que se passa
como regra em um manifeste-se como exceção no outro".
A bibliografia do Dr. Piza encerra mais de 1.200 títulos, incluindo
livros, trabalhos em revistas nacionais e estrangeiras em vários idiomas e
artigos em jornais, especialmente O Diário e O Jornal de Piracicaba. Inúmeros
trabalhos aparecidos na imprensa leiga, na realidade deveriam figurar em outra
parte, pelo seu profundo conteúdo filosófico, lingüístico, teológico, etc. Estão
neste caso artigos como "Um episódio pouco conhecido da História da Evolução",
"Deus não é o autor da Bíblia", "Deus Natureza", "Como pronunciar os nomes dos
grupos superiores da Classe Mastigophora do filo Protozoa", etc.
Inúmeros trabalhos constituíram contribuição à grafia e sobretudo à
prosódia corretas de termos biológicos. Napoleão Mendes de Almeida, em suas
Questões Vernáculas de O Estado de São Paulo, confirmou grande parte das
conclusões do venerando catedrático da USP e não confirmou todas por não ter
tratado das mesmas.
Durante a sua vida, Piza recebeu quantidade enorme de homenagens e
láureas. Tendo estudado na Alemanha no início de sua carreira, retornou ao
Brasil com o título de Doutor H.C. conferido pela Universidade de Berlim. Da sua
viagem ao Oriente, resultou o livro "Aspectos íntimos do Japão'', premiado pela
Academia Brasileira de Letras entre as láureas, figuram inúmeras placas de prata
conferidas por grupos de alunos e associações de profissionais e de colegas,
título de cidadão piracicabano, título de Paul Harris Fellow do Rotary
International, Medalha Prudente de Moraes do Instituto Histórico e Geográfico de
Piracicaba, Medalha "Luiz de Queiroz" concedida pela ESALQ, etc.
Nos últimos anos, com a vista grandemente arruinada, queixava-se de não
poder encontrar certos livros em sua imensa biblioteca. Com o auxílio de forte
lente, porém, continuava estudando e escrevendo e assim foi até poucos dias
antes de falecer. A sua Biblioteca, ele a doou em vida à sua querida Escola
Superior de Agricultura "Luiz de Queiroz", para onde deverá ser removida e
preservada com o maior carinho. Encerra literatura valorosíssima sobre insetos
ortopteróides, evolução, aracnídeos, etc. O mesmo será feito, segundo o seu
próprio desejo, com a grande coleção de troféus. "Estes pertencem a Escola, e
não a minha pessoa", disse muitas vezes.
Em 1926, juntamente com os Profs. Drs. Octavio Domingues e Nicolau
Athanassof, fundou a Revista de Agricultura. Logo em seguida, juntaram-se a eles
os Profs. Drs. Carlos Teixeira Mendes e Philippe Westin Cabral de Vasconcellos,
atualmente todos falecidos. Em 1987, a Revista de Agricultura publicou o seu 62º
volume, com três fascículos, totalizando 320 páginas. O último fascículo,
aparecido em dezembro de 1987, ainda conteve um trabalho do Prof. Piza,
intitulado "Reencontro com Metadiaea".
A Revista em apreço presentemente possui circulação internacional,
sendo os trabalhos nela publicados referidos em todos os periódicos que editam
abstracts dos assuntos ali tratados. Nascida numa época em que nem o Instituto
Agronômico, nem o Instituto Biológico, nem a ESALQ possuíam periódicos próprios,
a Revista de Agricultura contribuiu grandemente, como o faz até o presente, na
divulgação dos trabalhos dos pesquisadores das Ciências Agropecuárias.
Salvador de Toledo Pira Jr. nasceu em Capivari, SP, aos 28 dias de
dezembro de 1898. Faleceu em Piracicaba, SP, aos 22 dias de janeiro de 1988.
Deixa viúva a Sra. Helena Mendes de Toledo Piza, o filho Marcos Salvador de
Toledo Piza e dois netos.
Durante a sua longa vivência na Escola Superior de Agricultura "Luiz de
Queiroz", todos nós que com ele trabalhávamos, aprendemos a amá-lo e a
respeitá-lo profundamente, como homem íntegro, voltado à Ciência e, sobretudo,
pelo seu imenso amor à querida Casa à qual serviu até ser colhido pela morte.