Lauro Pereira
Travassos, nasceu em Angra dos Reis a 2 de julho de 1890. É um lugar bom. E
porto seguro. Estreita faixa de terra, entre o mar e a serra do Ariró, no
litoral sul do Estado do Rio.
Gabriel Soares
escreveu: "Defronte desta ilha, na ponta dela, da banda de oeste, está a
angra dos Reis; e corre-se esta ilha leste-oeste, e quem navegar entre ela e a
Ierra firme não tem que recear, porque ludo é limpo e sem baixo
nenhum".
E Pirajá da Silva
acrescenta: "Aí os navios são abrigados de todos os ventos".
Um núcleo inicial
de colonização já está estabelecido em meado do século XVII. Em 1556 chegam os
primeiros colonos, e em 1608 já é a vila dos Reis Magos da Ilha Grande.
Monsenhor Pizarro escreveu: "em 15 engenhos existentes no ano de 1749 se
trabalhavam a cana para fabricar açucar e 91 engenhocas reduziam a mesma planta
às aguas ardentes tão boas e perfeitas como as de Parati, que, comumente, se
reputam por mais superiores". Em 1864 é o segundo porto do Brasil
meridional. No catálogo dos municípios do Brasil lemos: "Muitos de seus
filhos destacaram-se no cenário nacional; D. Luiz Antonio dos Santos, Marques de
Monte Pascoal, arcebispo da Bahia; o padre Julio Maria, notável orador sacro;
Lopes Trovão o republicano; Raul Pompéia; Dr. Joaquim Carlos Travassos, autor o
"Dicionário dos Peixes"; Dr. Estevam José Pereira, autor do projeto de estrada
de ferro entre Belo Horizonte e Belém do Pará; o almirante João Cândido Brasil,
o general Silvestre Travassos e o brigadeiro Nóbrega, 1º ministro
da Guerra do Brasil independente".
Nasceu na fazenda
Japuíba. Em casa grande, colonial, cheia de quartos. Foi desapropriada, em
parte, para a construção da estrada Rio—Santos.
Me contou Sebastião
de Oliveira, que conheceu a fazenda, já então usada principalmente para
excursões científicas e estudos de flora e fauna, mas que ainda produzia a
cachaça Lourinho de excelente qualidade.
Pela lista de
filhos ilustres, podemos constatar que os Travassos já estão radicados a longo
tempo na região. De origem portuguesa, teriam ido seus bisavós inicialmente para
a Iha Grande. Já em Angra, nasceram seus pais João de Matos Travassos e Laura
Pereira Travassos.
Travassos nasceu em
1890. A república tinha apenas 1 ano. Saudades do velho Imperador estavam
presentes em quase todos os corações. Assim me contava minha avó.
Alfredo Bosi
escreveu na História Geral da Civilização Brasleira vol. III Tomo 2: "Matéria
de pura memoria, retratos pendentes da parede de quartéis e salas ministeriais,
parecem ser aqueles seus fundadores (da república) varões cenhudos saidos da
Escola Militar, meio contianos, meio spencerianos, implacavelmente leigos e
patrióticos. E em contraponto forçando a voz, para dominar o coro, outros varões
barões, do direito e do café, que mais que os afoitos marechais Deodoro e
Floriano, regeriam a política brasileira de Prudente de Morais e Washington
Luis".
Eram os primeiros
tempos da velha República. Insegura ainda, que tremeu medrosa quando os jagunços
de Antonio Conselheiro, espetaram na ponta de um chuco, a cabeça decepada do
coronel Moreira Cezar.
A falta de quadros,
gente do império nos altos cargos. O onipresente Barão do Rio Brando. E até
mesmo em Manguinhos, a grande figura do Barão de Pedro Afonso. Só depois é que
Oswaldo reinaria sozinho.
Lauro Travassos se
formou pela Faculdade de Medicina em 1913. Antes o colégio Alfredo Gomes. Temos
poucas informações sobre seus tempos de estudante no Rio.
Mas não é difícil
de imaginar. Era o Rio capital da República. Do início do século. Do comércio de
porta em porta. Quitandeiro, peixeiro, amolador de faca, que sabia fazer cantar
a lâmina na pedra de amolar. Do piriquito que tirava a sorte. Surgia o teatro
Municipal, mas o lírico ainda estava de pé. Das "francesas" das
companhias de teatro, que a sua maneira contribuíram muito para civilizar o Rio.
Da revista Kosmos, Renascença, Floreal e Fon-Fon. De Bilac, João do Rio, Luis
Edmundo, Carlos Maul e também de Lima Barreto. Das ruas imundas que Oswaldo e
Pereira Passos iriam transformar. O Rio dos quartos de alcova, sem janelas. Quem
tinha filha moça ou mulher bonita se cuidava. Do Contestado, Joazeiro e Canudos.
Das primeiras greves operárias, dos imigrantes e dos anarquistas. A civilização
vinha chegando aos poucos. Só muito tempo depois, em 1922, é que teríamos, a
semana de arte moderna, a fundação do Partido Comunista, os tenentes do forte de
Copacabana, e Jackson de Figueiredo fundava o Centro D. Vital.
A Faculdade de
Medicina, ficava na Rua Santa Luzia. Ao lado da Santa Casa. Meu pai estudou lá.
Ainda foi lá o meu curso de Anatomia Patológica. No Instituto Anatômico. Caindo
aos pedaços, é verdade. Mas com um mestre inesquecível — Amadeu
Fialho.
Na Faculdade
pontificavam os homens da clínica: Aloisio de Castro, Antonio Austregésilo,
Oswaldo de Oliveira. E, sobretudo, acima de tudo, Miguel Couto. Médicos, na
devoção ao que sofre; na cabeceira do doente. Rico ou pobre. Medicina é ciência
e sacerdócio. Esse o discurso da época.
E já havia Oswaldo
em Manguinhos. A medicina experimental começava entre nós.
Em 1913 apresenta
tese de doutorado intitulada: "Sobre as espécies brasileiras da sub-família
Heterakinoe". Pura zoologia.
Em 1913 ainda
publica seus primeiros trabalhos nas Memórias do Instituto Oswaldo
Cruz.
Coura escreveu:
"a estreia de Lauro Travassos como autor nas Memórias do Instituto Oswaldo
Cruz, o primeiro em colaboração com Gomes de Paiva, e dois outros como autor
único, inclusive iniciando a longa série "Contribuição para o conhecimento da
fauna helmintolójica brasileira", abre uma linha a que se dedicou o resto de sua
visa. De fato Travassos é o mais conhecido pesquisador brasileiro no exterior,
pelas centenas de espécies novas que descreveu".
Centenas de
espécies novas, e centenas de discípulos que formou. Era um mestre, formou
escola.
Estudou na
Faculdade de Medicina e trabalhou num Instituto de Medicina Experimental, mas
sua contribuição fundamental foi a zoologia.
Essas coisas sempre
aconteceram aqui. Só tivemos Universidade em 1920. Aprendia-se em lugares
errados. Mas dava certo. O que vinha da Europa ganhava cor local. Era o sol do
trópico. O lado de baixo do Equador.
Sérgio Buarque de
Holanda escreveu em Raízes do Brasil: "a tentativa de implantação da cultura
européia, em extenso território, dotado de condições naturais se não adversas,
largamente estranhas à sua tradição milenar é nas origens da sociedade
brasileira o fato dominante e mais rico em conseqüências".
É um pouco também
de autodidatismo, de iniciativa individual, de criatividade. Assim surgiu o
método da "guerra brasilica" que tanto trabalho deu aos experimentados
cabos de guerra do príncipe João Mauricio de Nassau.
Saíram dos colégios
dos Jesuítas (dispensados do recrutamento militar) os soldados competentes que
defenderam Olinda (1630) e Bahia (1638) contra os holandeses e o Rio de Janeiro
(1710—1711) contra os franceses.
A Fisiologia surgiu
como empreendimento familiar no porão da casa dos Osório de Almeida.
Um centro de
Medicina experimental surgiu, do que estava destinado a ser uma fábrica de soros
e vacinas.
Também a Escola
Militar, oferecendo ensino gratuito, casa, comida e roupa lavada, oferecia
oportunidade de estudos aos mais pobres.
Me vem à memória a
figura inesquecível de meu tio Ari Quintela. Morreu general, depois de uma vida
inteira dedicada ao estudo e ensino da matemática. De Maurilio Cunha, também meu
parente, oficial do exército e grande professor de História. De Pedro Pinto
Peixoto, pai de um grande amigo, Fernando, que expulso da Escola Militar,
tornou-se zoólogo do Museu Nacional. Especialista em aves, e dos
bons.
E havia espaço, e
assim se abriam os caminhos. Ainda Sérgio Buarque: "o prestígio pessoal
independente do nome herdado manteve-se continuamente, nas épocas mais gloriosas
das nações ibéricas. Nesse ponto ao menos, elas podem considerar-se legítimas
pioneiras da mentalidade moderna".
"Toda gente sabe
que nunca chegou a ser rigorosa e impermeável a nobreza
lusitana".
Afinal de contas,
um Pedro I criado nas estrebarias, amigo de cavalariços, semi-analfabeto,
independente, audaciosa , freqüentador de bordéis de 3ª, não era exceção.
Era a regra.
Exceção foi Pedro
II.
Em 1913, com seus
primeiros trabalhos Lauro Travassos cria a Escola Brasileira de
Helmintologia.
Mas corno não podia
deixar de ser, vamos encontrar os antecessores. Os anteriores. Alguns
fascinantes. Não podemos passar sem uma breve referência. Se dou largas à
fantasia, e se não são rigorosos demais em metodologia, os companheiros aqui
presentes, citarei em primeiro lugar essa figura extraordinária que foi Gabriel
Soares de Souza, senhor de engenho em Jaguaripe e Jaquiriçá. Morreu mato
adentro, em busca das minas de prata. Foi bandeirante, mas foi também botânico,
zoólogo, geógrafo, antropólogo e helmintologista.
Do Tratado
descritivo do Brasil de 1587 transcrevo:
"E também serve
esta carimá para os meninos que tem lombrigas, aos quais se da a beber, desfeita
na agua, como fica dito e mata-lhes as lombrigas todas" .
E
ainda:
"Tem esse gentio
outra barbaria muito grande, que se tomam qualquer desgosto, se arrojam de
maneiro que determinam de morrer, e poem-se a comer terra, cada dia um pouco,
até que vem a definhar e inchar do rosto e olhos e a morrer disso, sem lhe
ninguem poder valer, nem desviar de se quererem matar; o que afirmam que lhes
ensinou o diabo e que lhes aparece como se determinam a comer
terra".
Clara alusão a
geofagia do ancilostomótico.
E houve também a
Escola Tropicalista Bahiana: em 1866 Wucherer confirmava os estudos de Dubini
sobre ancilostomose. Em 1876 Silva Araújo publicava seus estudos sobre
filariose.
E houve também
Pedro Severino de Magalhães, cirurgião dos melhores, catedrático de cirurgia na
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e helmintologista nas horas vagas. Em
1898 descrevia o Hymenolepis carioca de ave doméstica. Descreveu uma
filaria no coração de uma criança que, em sua homenagem, foi denominada por
Blanchard, Dirofilaria magalhensi.
Os estudos de Lutz
sobre ancilostomose e esquistossomose. E Pirajá da Silva. E Gomes de Faria, com
quem Travassos publicaria o seu primeiro trabalho, tratando do encontro de
Linguatula serrata no intestino do homem.
Em Manguinhos
trabalhou durante toda a sua vida. Oswaldo abria espaço para qualquer tipo de
ciência. Desde que fosse de qualidade. Era assim naquele tempo. E incorporou no
seu trabalho, uma tradição que vinha do Museu Nacional. Do tempo do império, a
zoologia. A sistemática. Ao longo de sua vida publicou 440 trabalhos sobre
Helmintologia e Entomologia. Todos em português.
Conta Hugo Souza
Lopes, em depoimento à Casa de Oswaldo Cruz:
"Quando John
Lane em sua juventude realizou um curso em Harvard, o professor declarou, que os
alunos que podiam ler português estavam em vantagem. Tinham condições de estudar
no livro do Prof. Costa Lima".
Eram outros tempos.
De ciência lúdica gostosa, feita por paixão, com fé. Eu diria religiosa. A
dedicação de Anchieta, mas com um pouco também de João Ramalho ou Caramuru.
Afinal de contas as índias eram muito bonitas e viviam peladas.
Aprendi um pouco
dessa época com Eduardo Marques, com Oliveira Castro, Lobato Paraense, Herman
Lent, Hugo Souza Lopes.
Descobertas
originais eram publicadas em "O campo", em "Chacaras e Quintais",
ou nos jornais da época.
Ainda Hugo Souza
Lopes: "Quero chamar a atenção sobre a importância dessas despretenciosas
publicações de divulgação científica, como Chácaras e Quintais e O campo, que
tiveram uma função muito importante durante certa época".
Pedro Severiano de
Magalhães publicou no Jornal do Commercio seus estudos sobre o berne, a traça e
o caruncho dos livros.
Isso me lembra a
seriedade e o empenho com que meu pai editava Vida Médica. Como sozinho
fazia a correção das provas, a seleção dos artigos, a diagramação. E como se
demitiu, quando o laboratório que financiava quis lhe impor determinadas
regras.
Em 1926 Travassos
assume a cátedra de Parasitología da Faculdade de Medicina de São Paulo. Com a
colaboração de Cezar Pinto renova o ensino, com o desenvolvimento dos trabalhos
práticos, dando mais objetividade e estimulando vocações. Formar escola — isso
ele vai fazer durante toda a sua vida.
Como aliás outra
figura inesquecível, que mais tarde assumiria a mesma cátedra — Samuel Bansley
Pessoa.
Em 1929 a convite
de Fülleborn, o grande helmintologista alemão, vai para o Tropeninstitut, em
Hamburgo. Lá pontifica. Embora só falasse português. Me relatou Frederico Simões
Barbosa, que tendo ido a Congresso Internacional de Zoologia em Londres, lá
encontrou Travassos. Todos queriam conhecer o grande mestre, que timidamente
pede a Frederico:
— Fica perto de
mim. Me serve de intérprete.
Em Hamburgo se
torna amigo de José Oiticica. Outra figura inesquecível. Professor de Português
do Colégio Pedro II. Anarquista no velho estilo. Daqueles que tinham sempre em
casa, pronta, uma maleta com pijama e camisas e cuecas, porque nunca sabiam
quando a polícia vinha prendê-los.
Viajar à Europa
nesse tempo, quando não se tinha bens de família era difícil. Não havia CNPq,
nem CAPES, nem FINEP. Contava meu pai, que um dos recursos para estudar na
Europa, era se empregar como médico de bordo em navio do Lloyd, que ia para o
estaleiro na Europa. Enquanto o navio era consertado se aproveitava para
freqüentar os centros médicos e estudar.
Foi ainda professor
da Escola de Veterinária. Pela lei da desacumulação optou por Manguinhos, tendo
sido substituído por seu discípulo Hugo Souza Lopes, após renhido e elegante
concurso disputado com Jaime Lins e Silva.
Uma das
experiências educacionais mais importantes no Brasil, a Universidade do Distrito
Federal, liderada por Anisio Teixeira, criava entre nós os cursos de Ciência.
Foi de curta duração, porém marcou. Travassos era o professor de zoologia, tendo
Herman Lent como assistente.
Foi ainda membro da
Academia Brasileira de Ciências, e entre sua numerosa obra deixou um livro até
hoje consultado pelos que desejam se iniciar na especialidade: Introdução ao
Estudo da Helmintologia. Está pedindo uma edição atualizada, aos discípulos
em atividade.
Mas foi em
Manguinhos que desenvolveu durante sua longa vida e trabalhou até o fim, os
estudos que o notabilizaram.
Era um laboratório
modesto. De poucos recursos. Um microscópio servia a vários pesquisadores. Mas
havia entusiasmo, havia paixão. Por isso deu certo.
"Fé eterna na
ciencia" escreveu Oswaldo no seu ex-libris. E assim, religiosamente,
seus discípulos se dividiam em dois grupos: os aristocratas, de temo bem
cortado, gravata bem-posta, gestos elegantes. Eram bem nascidos, ou gostariam de
ter sido, os cardeais da ciência.
Os plebeus, mal
ajambrados, terno de brim amassado, calça sem vinco, colarinho torto. Eram mal
nascidos. Ou gostariam de ter sido. Os franciscanos da ciência.
Travassos pertencia
ao segundo grupo. A camisa muitas vezes queimada pelo cigarro, que
distraidamente nela encostava. Cigarros Distintos. Um senhor mata-ratos. Ninguém
filava.
Conta Sebastião
Oliveira que durante certa época usavam Fermento Fleishman nos trabalhos do
laboratório.
Travassos passa
pela padaria e resolve comprar uma certa quantidade.
— O senhor tem
Fermento Fleishman? Pergunta ao dono da padaria. Ao que o outro
responde:
— Como o senhor
sabe está em falta, mas para um colega, sempre se pode arranjar um
pouco.
Era um laboratório
pobre. Mas onde se trabalhava muito. Se sabia improvisar.
Hobsbown escreveu:
"Ele (Napoleão) jamais construiu um sistema efetivo de suprimento, pois se
apoiava nos campos. Jamais foi amparado por uma indústria de armamentos
minimamente adequada a suas necessidades triviais. Mas ele venceu suas batalhas
tão rapidamente, que necessitava de poucas armas. Em 1806 a grande máquina do
exército Prussiano ruiu perante um exército em que uma unidade militar inteira
disparou somente 1.400 tiros de canhão. Os generais podiam confiar um uma
coragem ofensiva ilimitada e em uma quantidade razoável de iniciativa
local".
Travassos
simbolizou uma época. Pelo conteúdo de seus trabalhos, foi distinguido ao nível
internacional com admiração de seus pares. Dese disse Sorjabin, o senhor
todo-poderoso, na Academia de Ciências de Moscou — irmão de
Molotov:
— "É o maior
helmintologista do mundo".
A escola brasileira
de Helmintologia, se projetou no cenário internacional. Travassos no Brasil,
como Skrjabin da União Soviética, Szidat da Alemanha, Dolffus da França, Stiles
e Hassal, Stumkard dos E. U. A, Cabalero do México, Yamaguti do Japão, entre
outros.
Lembra uma história
mais antiga. Huxley de Londres, Hoeckel de Berlim e Fritz Müller, de Desterro,
Santa Catarina, Brasil.
Travassos
simbolizou uma época. A nível nacional, as grandes dificuldades em fazer
ciência, num país como o nosso. Sem dívida muito mais difícil do que
hoje.
Mas dava-se um
jeito. A casa era pobre. Mas como em toda casa pobre, havia sempre lugar para
mais um. Era só chegar, pedir estágio e ia ficando. Aprendia e ficava contente.
Ninguém ia depois à justiça do trabalho dizer que tinha sido explorado. Se
trabalhava por amor. Quem se aposentava continuava a trabalhar. Tudo igualzinho
como antes. Só mudava o local de receber dinheiro no fim do mês. Ninguém se
aposenta do que é bom. Vivia-se com pouco. O consumismo náo tinha as proporções
dos dias de hoje.
Conta Hugo Souza Lopes: "Quando Travassos se casou Oswaldo
o chamou e disse:
— "Você se casou
não é, então precisa ganhar um pouco mais".
Quando comecei a
trabalhar, com José Rodrigues da Silva, na então Cadeira de Doenças Tropicais,
da Faculdade Nacional de Medicina, Universidade do Brasil, os salários variavam
de acordo com a condição de solteiro ou casado, de família pobre, remediada ou
rica.
Já era arcaico é
verdade. Mas o ambiente era bom. Aprendia-se. Ninguém reclamava.
Afinal de contas já
houve alguém que disse qualquer coisa do tipo: "a todos de acordo com suas
necessidades; de todos segundo suas possibilidades".
Travassos chegava
cedo ao laboratório. Gostava de ser o primeiro a chegar. Gozador, perguntava aos
que chegavam depois:
— Veio para o
almoço?
Com expressões
próprias era um gozador carinhoso. Querendo que estudassem mais dizia a seus
alunos:
— "Acho que
vocês estão com Gutembergofobia" ou quando não sabiam responder a uma
pergunta:
— "Oh! Oceano
Pacífico" — nessa época fundo era sinônimo de incompetente. Para arrematar
em seguida:
— "Ô gaita,
presta atenção, vou te explicar".
Sedutor, formou
escola, fez discípulos. Não os enumero, são muitos, certamente esquecerei
alguns, não quero cometer injustiças. Deixo a tarefa aos historiadores
profissionais, que hoje na Casa de Oswaldo, se dedicam a recuperar a memória da
Ciência e da Saúde no Brasil.
E não só na
Helmintologia, mas na Entomologia, especialidade a que também dedicou grande
parte dos seus esforços. Abriu caminho no meio científico para quem tinha
mérito, competência. Lembra-me a Delir, a história de Romualdo Ferreira
D'Almeida. Entomologista competente, especialista em borboletas. Por falta de
títulos universitários, trabalhava como carteiro para garantir o seu sustento.
Travassos o trouxe para Manguinhos. Um dia conseguiu transferência para a
carreira de biologista.
Lembra Fabre,
professor de meninos, no interior da França.
Embora suas
publicações se refiram especialmente a sistemática, tinha conhecimentos vastos
em Biologia e História Natural. Influenciou direta ou indiretamente novos
caminhos.
Em 1966 Moussatché,
Lent e Ubatuba publicam o primeiro trabalho, entre nós, sobre hormônio juvenil
em insetos. É a integração de duas escolas de Manguitos. Miguel Osório e Lauro
Travassos.
E tinham as
excursões. Ficaram famosas. São muitos os retratos documentando. Relações
pessoais de amizade permitiam conseguir um vagão da estrada de ferro no qual
instalava-se o laboratório. E foram muitas as viagens a Salobra no Mato Grosso,
e muitos os trabalhos científicos que delas resultaram.
E aí está a coleção
helmintológica do Instituto, mostrando o que se pode fazer com parcos
recursos.
Os animais
capturados, para autópsia, eram freqüentemente servidos no almoço ou no
jantar.
Travassos era um
homem simples. Não queria cargos. Não acrescentariam nada a sua vaidade. O seu
prestígio era de chefe de escola. Ele era, não estava.
Teve uma mulher
dedicada. D. Odete, que sabia fazer render o seu curto salário. E filhos três
dos quais naturalistas como ele. Lauro, Haroldo, Heraldo e Odete.
Faleceu a 20 de
novembro de 1970. Tinha oitenta anos. Trabalhou até o fim. Uma vida dedicada à
ciência. Morreu em Manguinhos. No Hospital de Manguinhos, tratado por outro
inesquecível companheiro o Dr. Genard Nóbrega.